segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

DIAS DA FOZ


O meu pai estacionou o Peugeot 403 no parque do Hotel do Facho à falta de espaço no aterro de areia que ficava diante do largo onde terminava a estrada.

Fui com ele enquanto ia tomar café ao bar do hotel. Entrámos pela porta principal, à direita o balcão de atendimento e atrás de si, pregadas na parede as fotos a preto e branco do Hotel da Urjeiriça.

Seguímos em frente pelo hall e depois virámos à esquerda no corredor, entrando na porta à esquerda. O bar fascinava-me com todos aqueles copos de dezenas de formatos pendurados sobre o balcão. Adorava o mobiliário e os quadros da parede que me levavam pelos mares, para longe dali.



O meu pai deixava-me ir à tarde ao bar pedir um ginger ale mas apenas quando não viesse da praia. Teria que vir vestido!

Enquanto o meu pai tomava café, entrou um velho e conhecido casal de ingleses e a sua implicante, loira e gorda filha, a Debbie. Já sabia que estavam por perto. Era Agosto e o seu Triumph Herald azul descapotável com a grelha para as malas sobre o porta-bagagem estava estacionado no exterior.


Furtei-me ao cumprimento com a loura gaiteira. Infelizmente o pai da Debbie padece de uma doença grave na laringe e está com uma voz muito rouca.

Saí então para a sala de jantar que estava já a ser posta para eventuais almoços. Um dia vim aqui jantar a convite de amigos de Évora que conhecera na praia e fiquei deslumbrado pelo facto de servirem dois pratos às refeições, um de peixe e outro de carne!

Cá fora no terraço olhei invejoso para a casa dos senhores Stoop que se debruçava sobre a praia. Esperei impaciente pelo meu pai para poder ir para a praia onde já avistava os meus amigos.


O mar convidava, azul e manso. Estava maré baixa e podia-se ir tranquilamente às rochas para tentar apanhar polvos ou mexilhão ou então, construir castelos na areia mesmo junto à àgua que varria a praia em pequenas ondinhas.

Estávamos no inicio dos anos 70!

Descemos então as escadas de madeira ao lado do ‘’Mar à Vista’’ e o meu pai foi ter com a mulher do José Luis, o banheiro, para lhe pedir da arrecadação de madeira o saco de pano que guardava os nossos baldes, pás, ancinhos e boias.

- Não se esqueça de guardar quatro bancos de madeira e dois estrados extra pois o meu sogro vem almoçar à praia. – recomendou-lhe o meu pai.

- Fique descansado – disse a senhora – dois bancos já lá estão, depois mando o meu filho entregar o resto aí sendo meio-dia!

Dirigimo-nos então para a nossa barraca. A minha mãe tinha vindo à frente com as minhas irmãs e esperou-me para me untar por completo de creme Nívea. Fiquei todo branco!


- Queres vir à praia das rochas ou tomar banho à lagoa, perguntaram-me uns amigos que se preparavam para a partida para o banho com os seus pais.

- Não, obrigado. Vou tomar banho com o meu pai. Vai ensinar-me a fazer carreirinhas!


À beira-mar o meu pai encontra logo velhos amigos. O Fernando Baptista mete-se comigo.

- Então Paulo Rogério, já não tens ‘’mê’’?! – pergunta-me ele sorrindo. Num Verão anterior quis levar-me para a água mas eu recusei e aparentemente dizia:

- Tenho mê, tenho mê! - Como quem diz ‘’tenho medo!’’.

Depois do banho venho secar-me para a barraca. Chega a senhora dos bolos, vestida de branco e dedos calejados pela agricultura de inverno. Fico indeciso entre um pacote transparente de batatas fritas caseiras e um dos bolos. Escolho uma bola-de-berlim com creme. Só mesmo na praia têm aquele sabor!


Vamos depois todos em grupo até à lagoa, na zona da aberta. Os rapazes com as barbatanas e os óculos de borracha azuis ou pretos, as raparigas de toalha e de toucas.

Nas águas tranquilas da lagoa, os miúdos brincam aos cachos sobre velhas câmaras de ar de pneus de camião, as meninas preferem sentir os embalos da pequena ondulação deitadas em pequenos colchões insufláveis.
O banho dura horas para podermos aproveitar bem a ida à lagoa. Nunca sabemos se voltaremos mais uma vez nesse dia.

Depois desafiam-me para jogar ao prego que eu ainda mal aprendi, farpa, palmas, costas, murro, garfo, sino, flechas, depois os martelinhos!

As minhas irmãs jogam ao ringue junto às barracas. Está uma manhã serena e quase sem vento. Um dia perfeito de Verão, aqueles dias únicos e raros que transformam a Foz na melhor praia para todos nós, isso e o reencontro anual com os amigos.


Enquanto jogo olho à distância a fachada branca imponente do Palacete dos Viscondes de Sacavém que nós alugávamos ao ano e onde passávamos todo o Verão e a maioria dos fins de semana do ano.

A imagem trouxe-me de volta às recordações de um Verão anterior, o de 1970.

Passava as manhãs a brincar às touradas com os amigos. As tábuas que serviam de tampos de mesa nas barracas, na época em que se levava tupperwares para a praia com comida quente e se almoçava quase como em casa, eram enterrados ao alto na areia utilizados como burladeros e com as toalhas toureávamos os ‘’touros’’ e fazíamos pegas de caras e de cernelha. Os mais fortes ou robustos faziam de touro ou de rabejadores e os mais leves de toureiros ou de forcados.

Nas pausas íamos apanhar as caricas que atiravam para o areal debaixo do ‘’Tábuas’’. Este era o nome porque era conhecido o restaurante Mar à Vista por ser construído em madeira, com tábuas pintadas de azul. Por causa da eventualidade das marés vivas, o restaurante fora construído sobre estacas e existia um enorme espaço vazio sob a casa que servia para guardar as grades de refrigerantes e cervejas e as botijas de gás. Nesse areal, húmido e sem sol, juntavam-se centenas de caricas que colectávamos para as nossas colecções. Depois, desenhávamos circuitos automobilísticos no areal entre as barracas e fazíamos corridas de caricas nomeando-as com os nome dos nossos pilotos preferidos. Jackie Stewart, Jochen Rindt, Jean-Pierre Beltoise, Jacky Ickx, Pedro Rodriguez, Graham Hill.


Quando conseguíamos dos nossos pais íamos ao Tábuas beber gasosas e laranjadas da Rical e comer caranguejos enquanto nos divertíamos com os esguichos de água que saíam das amêijoas e berbigões expostos em tabuleiros de plástico branco sobre o balcão de entrada.

Éramos corridos das casas de banho ou ao pedir um copo de água sem fazer despesa mas isso já fazia parte da tradição de cada Verão.

Pelas tardes jogávamos ao ringue ou ao mata, jogávamos ao prego ou ao galo com pedrinhas brancas e pretas e fazíamos castelos na areia. Alguns de nós tinham uns aviões de plástico que se compravam na Tália e que eram constituídos por um corpo em forma de fuso amarelo, duas asas presas com arame em plástico azul e que zumbiam com a força do vento. Estes aviões eram presos por um fio de nylon enrolado a um carreto verde e fazíamos acrobacias aéreas e voos rasantes sobre os cabelos das nossas amigas.

Num dia de manhã segui como habitualmente com o meu pai até ao Hotel do Facho onde o esperava um amigo dos tempos do Colégio Moderno, abraçaram-se no reencontro e o meu pai apresentou-me ao seu amigo. A única coisa que fui capaz de dizer foi:

- Ó pai, o teu amigo tem um dente partido!

O meu pai nem soube onde se meter, naquele tempo uma criança não deveria ter estas tiradas, era considerado uma grande falta de educação e afinal, a responsabilidade dessa falha era dos pais!

O meu pai embaraçado pediu desculpa ao amigo e deu-me um sermão dos antigos. O amigo realmente tinha uma pequenina falha num dos incisivos e de cada vez que o voltei a reencontrar nos anos seguintes ele lembrar-me ia dessa história. O seu nome? David Mourão Ferreira.

Nesse Verão, a Foz recebera como habitualmente a visita de muitos amigos do meu pai, sobretudo militares em comissão em África que vinham de férias e ficavam alojados na FNAT. Traziam consigo a reboque nos seus pequenos minis, Fiat 850 e Renault 8, vistosos barcos desportivos em madeira com volante e motor fora de borda. Passavam tardes a competir entre si ou a particar ski.


Nesse Verão a minha mãe deu a festa dos seus 30 anos na casa que alugávamos para férias, o Palacete dos Viscondes de Sacavém e recordo-me de todos os seus amigos de África a chegar a casa. Esta tinha dois pisos e no rés-do-chão as várias salas distribuíam-se em redor de um átrio central. No primeiro piso, o dos quartos, havia uma enorme abertura protegida por uma balaustrada que dava para esse átrio central. Fomos mandados para a cama cedo e lembro-me de estar em pijama, sentado no chão e a cabeça entre os pilares em madeira torneada, olhando para baixo e admirando as pessoas que chegavam e o clima de festa.

Num desses dias os meus pais levaram-me a almoçar ao Félix, o mais afamado restaurante da Foz embora no Verão sofresse também a concorrência do Vasques que ficava onde hoje é o Cais da Praia e do Solar da Paz onde se comia um fantástico ensopado de enguias no Verão e um belíssimo Cozido à Portuguesa no Inverno.

A ementa era extensa mas invariavelmente optávamos entre a caldeirada e o ensopado de enguias. Eu pouco apreciava os pratos pois em criança detestava peixe e tudo o que viesse do mar excepto mariscos e moluscos. Do que eu gostava mesmo era do pão frito que acompanhava esses pratos! Praticamente o meu almoço consistia em comer fatias desse pão cobertas de molho da caldeirada ou do ensopado e encostar para as bordas do prato todo o peixe que me serviam com o pretexto de que tinha muitas espinhas. Na realidade todos nós, miúdos, aguardávamos o momento de poder atacar a famosa Montanha Russa, um doce de claras em castelo que vinha com um apetitoso creme de ovos a escorrer.

Assim que tínhamos permissão saímos da mesa e corríamos pelo campo em terra batida até ao cais de madeira para ver os barcos aí atracados.


Ao lado, deitada no areal estava a velha bateira do meu avô paterno, a Albatroz. O meu avô Chico ainda me levou umas noites à pesca do candeio, aos polvos, solhas e linguados. O meu avô morrera no ano anterior e a bateira ali ficara abandonada.

Quando não tínhamos autorização para ir ao cais íamos jogar matraquilhos no telheiro diante da lagoa ou num outro que ficava junto à porta da cozinha, do lado que dava para as bombas de gasolina.

Nessa tarde, o movimento era grande, realizava-se a Rampa da FNAT e eram muitos os carros que se alinhavam na estrada esperando a sua vez de entrar em acção. A rampa tinha poucas centenas de metro e percorria, com cronometragem ao segundo, a ladeira que ía do portão da FNAT até ao seu ponto mais alto. Com o seu espírito desportivo, os amigos do meu pai, decidiram, também eles, participar na competição.

Fernando Santa-Bárbara em Hillman Imp - Rampa FNAT 1970

 

A fila de carros dos participantes era tão grande que se estendia até à casa branca da D. Júlia, a quem a minha mãe comprava sacos de batatas.


O clima era de festa e nessa noite, após o jantar de distribuição de prémios na própria FNAT realizava-se um baile. Nós, os mais pequenos, contudo tivemos como alternativa uma sessão do cinema ao ar livre no baldio que ficava (e fica) diante dos muros da FNAT.


No dia seguinte íamos à missa na pequena capela diante dos Vasques, mesmo ao lado do torreão onde antes fora a casa dos falcoeiros marroquinos que Francisco Grandella mandara construir.

E os dias continuavam, constantes e iguais, vibrantes e imemoráveis até ao fim do Verão.


Em memória do Fernando Baptista e de todos aqueles que me fazem valer a pena recordar a minha infância.

Fernando, o mar já não me mete medo. O meu único medo é perder os amigos como tu.





Natércia Barreto - Óculos de Sol




Ronnie Cord - Biquini às Bolinhas Amarelas


Gino Paoli - Sapore di Sale

Sem comentários: