quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

QUE VIVAS PARA SEMPRE! - AS MEMÓRIAS DA MARIA JOÃO


Isto de escrever num blogue ou num grupo deveria, parece-me a mim, obedecer a alguma planificação e ser feito em horas e datas marcadas. Julgo perceber que o Paulo publica as suas crónicas à segunda-feira e de facto acho que faz sentido ter alguma periodicidade. No entanto, é-me praticamente impossível agendar assim uma actividade que me surge quando surge, pelo que deixo ao critério do Paulo decidir quando pôr no blogue, enquanto eu vou pondo no site do grupo, mais ou menos quando me apetece, o que quer mais ou menos dizer, quando me surge qualquer coisa interessante de que falar.


Esta memória, não poderá certamente ser lida com o riso nos lábios visto tratar-se de algo bem menos divertido, mas não deixa de ser uma memória pela qual todos ou quase todos nós passámos. Lembrei-me de tudo isto quando dei com um pedido de amizade da Filomena Diogo no Facebook. De aceitar o pedido a bisbilhotar-lhe as fotografias foi um passo e, ao dar com algumas bem antigas, ainda dos tempos de escola primária, vi-me de repente avassalada por lembranças desse tempo.


Andámos as duas numa professora particular, que a esta hora já deve ter morrido. Daquele tempo e, especificamente daquela turma, lembro-me, além da Filomena, do Pedro Gonçalves, do CáZé Costa Faro, do João que morava na praça do peixe, do CáMané, da Fátinha e de um sem número de pessoas de quem recordo as caras e não consigo lembrar os nomes. O que recordo melhor é o medo.


A professora tinha uma régua de madeira a que dava uso regularmente, de acordo com regras por si estabelecidas e que hoje nos pareceriam dignas de filme de terror, mas na época eram bem reais.


Eu era boa aluna e nunca apanhei muito, mas o que via passar-se diariamente debaixo do meu nariz era suficientemente aterrador, para sentir por ela um misto de ódio e medo, que nunca me abandonou o resto da vida.


Desde aí, ganhei o hábito de roer os dedos à volta das unhas e só recentemente consegui quase livrar-me disso. Mesmo assim, em momentos de tensão, lá vai um dedito…


Quando a encontrei mais tarde, já muito velha e claramente debilitada, lembro-me de lhe ter desejado cá dentro, que vivesse para sempre, para que tivesse a oportunidade de sofrer todas as maleitas da velhice até à última consequência.


Mas então o que se passava assim de tão traumatizante para as crianças? Bem, nem sei bem por onde começar, mas talvez pela regra do “cada erro cada reguada”. Esta era a regra dos ditados e cheguei a ver um colega levar 60 reguadas de seguida. Apre, que e mulher tinha genica e gostava de bater…


Escusado será dizer que a maioria dos miúdos dava incomensuravelmente mais erros do que daria se não fosse a espada de Democles sistematicamente pendente sobre as suas cabeças. Como davam mais erros apanhavam mais e tinham cada vez mais medo o que os levava a dar cada vez mais erros… Enfim, uma pescadinha de rabo na boca.


Quanto à aprendizagem, também não me parece nada que melhorasse com o método.


Também recordo que uma colega usava normalmente o relógio com o mostrador virado para a face interna do pulso. Então, a professora pegava-lhe na mão com a palma virada para cima e os dedos bem dobrados para baixo, de forma a expor a palma e o pulso, explicava mais uma vez que não se responsabilizava por relógios partidos (a aluna que o pusesse noutra posição) e toca de bater com quanta força tivesse, na palma da mão e na parte da frente do pulso, até acabar por lhe partir mais um relógio. Não me lembro quantos lhe partiu assim, mas penso que mais que um certamente. Mesmo que tenha sido só um já foi demais.


Também era digno de ver quando um(a) aluno(a), depois de levar umas valentes reguadas, ia a chorar para a carteira e o choro se misturava com o ranho, depois era tudo devidamente fungado.




Não sei o que provocava nos meus colegas, mas acredito que terá provocado o mesmo que em mim: profunda pena do ou da infeliz, e cada vez mais ódio pela professora. Agora o que eu nunca consegui perceber era como é que os pais deixavam que estas coisas acontecessem.


Dos meus não me posso queixar, que nunca permitiram estes abusos, mas outros houve que nunca vi levantarem um dedo para defenderem os filhos de semelhante barbárie. Dos meus lembro-me bem do dia em que a minha irmã levou nove reguadas: como era bem branquinha apareceu em casa com as mãos roxas, o que noutros miúdos só aconteceria com muitas mais, mas os meus pais meteram-se no carro e lá rumaram a casa da professora para pôr os pontos nos is e os traços nos tês.

Pelo caminho o meu pai dizia à minha mãe: “Teresa não te enerves, deixa-me ser eu a falar”. Quando lá chegaram, às tantas já ele estava aos gritos com a professora que lhe dizia, “O senhor não grita na minha casa”, e ele respondia, “Então vamos lá para fora porque vai ter de me ouvir, quer goste quer não”.


Disto tudo que conclusões devo tirar quando se sabe que hoje em dia os miúdos batem nos professores, ameaçam-nos e fazem deles gato-sapato?



Acho que nem tanto ao mar nem tanto à terra. Se hoje os professores atravessam uma crise de autoridade e dispõem de poucas ferramentas para disciplinar meninos muitas vezes bem mal-educados, naquele tempo os professores estavam apenas um pequenino degrau abaixo da divindade e tudo lhes era permitido. Também posso concluir, à laia de remate para a minha crónica anterior, que talvez devido a estes excessos no nosso passado, tantos de nós enveredaram por uma via por vezes demasiado facilitadora, quando chegou a nossa vez de educar.

post de Maria João Sacadura



1 comentário:

Anónimo disse...

Concordo uma reguada dada com moderação. Evitava a indisciplina é mais que muita e ninguém. Mas estamos tão traumatizados com este tipo de episódios que rejeitamos linearmente o uso pedagógico da régua. O problemas são sempre os excessos. Nem 8 nem 80. De vez em quando a minha professora dava uma réguada a quem se portava menos bem e nunca veio mal ao mundo. Ainda apanhei e lembro-me de apenas sentir um formigueiro na mão nada mais. Nunca assisti a brutalidade. O castigo máximo eram duas palmadas.