segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

PRAÇA DA FRUTA



I

Percorro a Praça da Fruta e penso o quanto é vital para a cidade. Ela é o coração que irriga energia para as outras artérias, o pólo de atracção que encaminha as pessoas para o centro e daí as reconduz pelas várias ruas circundantes. Facilmente reparamos na quietude do centro da cidade após terminar o mercado, lá para as duas da tarde.

Sempre foi assim, desde os tempos em que era a Praça do Pelourinho (demolido já no século XIX), Praça do Comércio e Rossio da cidade até ser calcetada com o patrocínio de Faustino da Gama no século XIX e passar a chamar-se Praça D. Maria Pia. Com a instauração da República passou a denominar-se Praça da República. Mas sempre foi, e sempre será a nossa Praça da Fruta.

A praça é muito mais que o ex-libris da cidade. Na realidade só o é nas horas da realização do mercado. São as gentes que vendem as frutas e os hortícolas, as flores e as vergas, as cerâmicas, os enchidos, os queijos e os bolos que dão colorido à praça e que são realmente importantes para a vitalidade e divulgação da cidade.

No dia em que a praça da fruta desaparecer, em nome de uma qualquer modernidade, a cidade morrerá. Vão por mim.

Só quem fez vida fora da província, só quem faz a vida num grande subúrbio percebe o perigo eminente que paira sobre a nossa cidade.

Se um dia se impuser, a troco de melhores condições de higiene, segurança e de conforto a mudança do mercado para um recinto fechado e em simultâneo se instaurar ainda maiores centros comerciais na cidade, esta vai mudar, vai perder identidade e sobretudo vai perder vida, a vida que é gerada todos os dias pela realização do mercado.

Contra mim falo que beneficio profissionalmente do aparecimento de novas grandes superfícies, mas talvez por isso, por ter vivido tanto a situação de outras cidades sei os perigos que acarreta para uma pequena cidade, uma tão grande modificação nos hábitos quotidianos.

A troco de uma modernidade representada pelo surgimento de umas dezenas de lojas de marca, as pessoas mudam. E mudam drástica e inexoravelmente.

As visitas a um centro comercial de grandes dimensões passam a servir como actividade lúdica substituindo os reencontros nas ruas, nas praças, nos cafés, no parque. Passam a servir como actividade ‘’cultural’’ roubando tempo livre às visitas a museus e exposições. Passam a servir como actividade desportiva, sobretudo quando as populações, vestindo os seus fatos de treino de marca, decidem ir fazer jogging para o shopping e seus supermercados.

Viram? Ainda nem mencionei a razia que se faz no comércio tradicional e ruas sem comércio são ruas sem vida, sem segurança, sem atracção.

Eu não sou contra os shoppings quando devidamente enquadrados na cultura de uma cidade e não como normalizador dos hábitos populacionais. A sua presença é útil quando gera mais do que actividade comercial, como centro de cultura e de lazer que complemente a cidade mas que não substitua o que a caracteriza, o que a individualiza.

Uma combinação perigosa de factores de risco paira sobre as Caldas. Imaginem a nossa cidade sem o seu mercado diário e com o centro esvaziado de uma população que passa a correr para o shopping.

Caldas morrerá. Passará a existir uma outra cidade com o mesmo nome, em nada diferente a uma cidade dos subúrbios de Lisboa. Descaracterizada, meramente habitacional, sem vida!

Os passeios à Foz e S. Martinho, à Nazaré, Alcobaça e Peniche serão substituídos por idas ao shopping. Não acreditam? Perguntem o que aconteceu à Figueira da Foz após a abertura dos shoppings em Coimbra, o mesmo à linha do Estoril, Sesimbra, foz do Porto.

Os encontros diários com os amigos nos cafés e praças passarão a ser substituídos por encontros ocasionais nos pisos dos shoppings e todos deixarão de confluir à praça da fruta alimentando as artérias circundantes. Não acreditam? Então porque é que as outras ruas das Caldas estão já hoje vazias? É verdade que está instalada uma crise económica que faz diminuir o consumo mas queremos nós potenciar ainda mais o fecho de mais lojas de rua, apresentando o desolador aspecto que descaracteriza e nada dignifica a nossa cidade?

No dia em que a Praça da Fruta morrer passará a ser apenas a Praça da República, a versão pós 14h00 do nosso Rossio. Bonita, já descaracterizada do ponto de vista arquitectónico e sobretudo sem as pessoas que lhe dão vida.

Os que nos visitarem encontrar-nos-ão nos modernos centros comerciais. Não verão ninguém a caminhar pelas ruas e francamente, se vierem de grande metrópole, sentir-se-ão mais do que nunca em casa!

E depois o nosso ex-libris serão algumas lindas balconistas das lojas de marca de um grande centro comercial. Não terão rugas nem marcas de uma vida de trabalho no campo, serão perfeitas com todas as certificações ISO9000 e atestados da ASAE mas serão certamente esquecidas em muito menos tempo!



II

É sábado de manhã, o meu momento preferido da cidade. Reencontro os amigos e sei das novidades, compro aquilo que só a praça me dá e esvazio a cabeça do stress da semana. Hoje não vou ter que ir para Lisboa, hoje posso desfrutar da qualidade de vida que consigo manter para o resto da família.

Venho do lado do Chafariz e uns passos adiante, de uma posição ligeiramente mais elevada, contemplo a praça na sua plenitude. A minha memória volta de novo atrás no tempo.

Contorno os baixos edifícios que moldam o lado este da praça e onde no século XIX e anteriores existiu a ermida de Nossa Senhora do Rosário, demolida cerca de 1834. Voltei mesmo atrás no tempo, tenho agora a certeza pois já não existem estas casas, uma drogaria, uma ourivesaria,  e o que existe agora em 2010 é um inexplicável parque de estacionamento que deforma o topo da praça.


Desço à praça e percorro-a pelo lado esquerdo, de este para oeste. Passo a loja de ferragens e pelo Banco e pelo café Central, vejo jovens a saírem da porta que dá acesso à cave do café depois de um jogo de bilhar. Passo  a loja de tecidos a metro, mantas e colchas do Sr. Carvalho, avô do Pedro e do Ricardo Ferreira, vejo crianças a entrarem na Pelicano para procurarem pequenos cartões de horários escolares para a colecção e chego à confluência com a Rua da Liberdade. Admiro umas pandeiretas que estão penduradas à porta da casa Girão e ainda entro nessa rua para admirar nas montras da loja seguinte os aparelhos de pesca, as miniaturas e os kits de montar da Revell, Heller, Airfix, Tamiya, Hasegawa e Matchbox. Uma das lojas que mais me fascinam!

Retorno à Praça da Fruta e tenho de ziguezaguear entre os populares encostados na parede do armazém de apoio à farmácia Freitas, cuja fachada dá para a praça, e os quatro ou cinco engraxadores que se alinham à sua frente, mesmo antes do Banco de Portugal.

As minhas memórias vão e vêem no tempo e este anda para trás e para a frente. Passo à Polana e encomendo um livro para a escola e cumprimento o meu tio-avô Joaquim Baptista à porta da sua loja.

Ao lado, na Rua do Parque, sobem e descem burros a caminho das suas estrebarias. O cheiro é característico como o que encontrei no cimo da praça junto aos edifícios do antigo Hotel Rosa.

Diante de mim está agora o café Lusitano, entro para comprar cigarros, cumprimento o Sr. Silvino e o Sr. Silva. No café ao lado, o Flor de Lis, vejo mais caras conhecidas.


O tempo volta de novo para trás e estou a entrar nos Grandes Armazéns do Chiado, subo a um piso de cima para admirar os brinquedos que não encontro em mais nenhuma casa da cidade, nem mesmo as lojas da Rua das Montras, a Tália, o Turita ou a Átila têm brinquedos assim.


O tempo volta a adiantar-se, desço um pouco abaixo para passar diante da Bongosto, a loja de frivolidades e ver as minhas irmãs a comprarem contas e missangas para fazerem uns colares para venderem às amigas da minha mãe. Passo diante do Talho Central do Sr. Nogueira, aceno à Vanda e passo para o outro lado da rua. Hoje tenho uma consulta com o Dr. Mário de Castro. O seu consultório fica por cima  da loja de roupas do Sr. Neto, pai do Zé, que foi meu professor de ginástica no liceu, e da Célia. À esquerda desta loja fica uma outra que vende sementes. Do outro lado da porta de entrada fica a drogaria. Cruzo-me com o Henrique que traz as compras da esposa do estimado médico, a D. Rita, da Zaira para o consultório. A sua cabeça contorce-se no seu gesto incontido enquanto me cumprimenta.

Mais para a frente, ao fundo da praça estão os armazéns de mercearias de José Gomes Rodrigues e as lojas de móveis do Sr. João Ramos na esquina com a Rua Dr. Júlio Lopes. Nesta rua abriu a primeira verdadeira boutique das Caldas, a Góia. Vêm clientes de todo o lado para comprarem peças de vestuário exclusivas ou que só podem ser encontradas em Lisboa.

Um pouco mais abaixo na mesma rua, ao lado do talho abriu um restaurante, a Cascata, da D. Gina, cuja atracção principal é mesmo uma pequena cascata no centro da sala.


Quando saio do consultório é quase uma da tarde e por momentos o tempo avança ao passar diante da loja do Armando Maria ‘’Ça Va’’, a Belle Epoque, que mais tarde mudou o nome para Julio's. Antes havia aqui um armazém de mercearias. Segue-se uma pequena loja de electrodomésticos e umas portas à frente o Convivio acabado de abrir.

Cumprimento o Sr. Manel Enxuto que me pergunta se gostei do jantar da véspera. O Convivio, acabado de abrir, tinha como grande atracção um bife à Convivio com molho de café e umas entradas de camarão-tigre de que só ouvira falar aos meus amigos regressados de Moçambique.

O tempo continua a fazer das suas e passo diante da Padaria Taboense e do Banco Pinto de Magalhães, estou de volta a um passado mais distantes quando aí existiam dois edifícios com a volumetria correcta.



Chego diante da Farmácia Central, o Sr. António avia pacotes de papel de bicarbonato de sódio, e sentado pacificamente num banco está o Sr. Ferreira, decano da cidade e prestes a completar 100 anos.

Vou pesar-me na curiosa balança fazendo os pesos deslizar pelas varetas horizontais para contrabalançar o meu peso. Divertida forma de verificar o meu peso. 57 quilos! Não há dúvida que estou de volta ao passado!

No primeiro andar do prédio devoluto ao lado da farmácia ficava o salão de cabeleireiros de Casimiro Campos Silva e gerido pela sua prima Estrela. Casimiro e a sua mulher Maria Adelaide Saguer são um dos casais mais famosos nas Caldas pela sua vivência com o jet-set. O cabeleireiro chegou a pentear algumas estrelas de cinema e membros da realeza europeia.

Chego à Zaira. À porta, junto à balança que serve para pesagens públicas (com moedas de cinco tostões) está encostado o taxista que vive por cima do café. O seu táxi está como habitualmente estacionado diante da câmara municipal, mesmo antes da passadeira e junto aos semáforos, recentemente colocados para regular o trânsito que vem da rua das montras.

No lugar daquela balança esteve durante muitos anos um engraxador que a pedido dos fregueses da Zaira ia engraxar os seus sapatos enquanto estes tomavam café sentados a uma mesa.


A Zaira a esta hora ainda tem alguns dos seus habituais frequentadores. Na mesa de entrada junto à janela, o Dr. Calheiros Viegas e o Prof. Barreto, meus ídolos no ténis pela pujança na sua veterania, conversam em amena cavaqueira enquanto desfolham o Diário de Noticias e a Bola, ambos os jornais do tamanho de lençóis! Mais atrás numa outra mesa o Dr.Alcino Coelho e o Dr. Augusto Saudade e Silva. O João e o Jorge rendem agora o Romão. Entro rapidamente para cumprimentar alguns amigos que decidiram almoçar o pequeno–almoço standard da Zaira.

Num cartão amarelo por baixo dos tampos de vidro das mesas pode ler-se : galão ou chá, pão, torradas ou croissants, compota, geleia ou mel (que são servidas em tacinhas de vidro) e manteiga (que chega num pires enrolada em pequenos rolos). As memórias do Sr. César Tempero e mais tarde do Sr. Januário vêm-me à cabeça quando o tempo de novo avança.

Saio apressadamente, tenho de aguardar a luz verde de peão para atravessar a rua das montras e rapidamente passo diante da casa que vende bombas agrícolas e pela casa Monteiro.

Ouço o pregão de fundo do velho Henrique, o mais popular ardina da cidade. Descortino-o no meio da praça junto à banca de queijos da mãe da Luisa Jordão. Ali está ele com o seu habitual fato de macaco de sarja azul e a sua boina basca. Ao canto da boca a eterna beata. Nessa tarde, como em tantas outras, encontrá-lo-ei a vender jornais no parque e a gritar na sua voz de bagaço : Olhó República, Popular, Capital, Lisboa , enquanto nos piscava o olho malandro!

Só anos mais tarde percebi a sua ironia!

Passo ainda por outras lojas de tecido a metro e vestuário de baixo preço e diante de mais um prédio que irá ser demolido, era onde ficava o armazém de mercearias Frias & Gonçalves, o que virá a seguir?

O encontro com mais um amigo detém-me no passeio e fico a admirar a praça no seu esplendor. Absorvo as essências e os sons que emanam do terreiro. Sinceramente agrada-me todo aquele colorido. Diante de mim está a mãe da minha colega Mila Ferreira e a sua banca de cerâmica regional.

Um carro com altifalantes passa a anunciar as 20 voltas em ciclismo às Gaeiras cujo percurso se faz passando a praça, subindo a Rua Diário de Noticias em direcção ao Imaginário, Matoeira, virando à direita para as Gaeiras e virando aí de novo à direita pela estrada nacional até às Caldas, passando pelo moinho Saloio, quartel e Rainha.


Os nomes de Firmino Bernardino, Fernando Mendes, Venceslau Fernandes, Joaquim Andrade e outros são gritados em destaque. Melhor só os carros que anunciam as touradas!

Eu sou mais fã do automobilismo e uma vez por ano a praça assiste à passagem dos concorrentes ao Rallie de Portugal-Vinho do Porto.

Sigo a caminhada na companhia do amigo, passo em frente da Ourivesaria do Sr. Augusto e da Frami. A Carolina e a América afadigam-se a atender os clientes, vendendo caixas de folhados por rechear, marmelada a quilo, drops e rebuçados, frascos de pêra em calda e bolos de todo o tipo.

Ao lado, o velho Silva Santos encerra a porta da sua papelaria, a loja com maior variedade de artigos de papelaria que possa existir nas Caldas mas ao mesmo tempo a mais anárquica em organização. Raramente saímos de lá com algo pretendido se não for algo de primeira necessidade, temos sempre que voltar ‘’um pouco mais tarde’’!

Passo diante do café Invicta, da casa Pardal e da Havaneza. Depois o Bocage. Vejo o Franco e o Sr. Bonécio e o Sr.Prego perto do balcão. Numa das garagens do pátio das traseiras, onde a família Jordão aluga quartos a enfermeiras e professoras, a Isabel Prego deu a sua última festa de anos antes de partir para Setúbal.

Atravesso depois a rua em frente da ermida de S. Sebastião e deparo-me com a entrada para as escadas que dão para o wc público subterrâneo que dá apoio aos feirantes, ao lado das escadas, a placa de pedra dando indicação dos quilómetros para a Matoeira.

Nesse ano a Gazeta das Caldas publicou como mentira do dia 1 de Abril que estava a ser construído o Metro nas Caldas e a primeira linha seria para a Matoeira. Quem via pela primeira vez aquelas escadas e a placa da Matoeira corria as ruas da cidade elogiando a iniciativa camarária!

Ao lado da entrada do wc e encostado à parede da ermida está o casinhoto de madeira onde trabalha um engraxador, no passado trabalhavam aí vários, lado a lado.

Regresso ao ponto de partida, o meu tempo volta a ser o presente. As pessoas, os lugares e os eventos voltam a fazer parte do passado. Não há lugar à nostalgia, apenas a experiência e recordação de quem presenciou e continua a presenciar os acontecimentos. A modernidade e a melhoria da qualidade de vida devem ser recebidas de braços abertos e devidamente enquadradas na cultura de cada lugar.

As pessoas que partiram serão devidamente recordadas e homenageadas e outros tomarão os seus lugares na memória das novas gerações, os lugares serão gradualmente substituídos por outros mais adequados às necessidades e hábitos que se forem desenvolvendo.

Mas há algo perene e que será sempre insubstituível. A alma da cidade!

Uma vez perdida não seremos mais do que um qualquer subúrbio puramente habitacional sem nada que nos una, que nos prenda, que nos faça sentir orgulhosos e únicos.


Fonte de histórico: ''Praça da Fruta'' de Carlos Marques Querido




Nota: O João Miguel Cortez recordou, e bem, que a loja na Rua da Liberdade que vendia os kits de montar, os aparelhos de pesca, as miniaturas de automóveis, etc, era do Sebastiãozinho, uma figura característica pelo seu bigode à escovinha e a sua voz anasalada. Lembrou também que o taxista que vivia por cima da Zaira era o Sr. Virgilio.

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