segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O SEGUNDO ANDAR DO DIOGO

A DOR QUE NÃO PASSA




Não existe nada pior na vida que a perda de entes queridos. Nada!


De acordo com os médicos, já tive que suportar algumas das piores dores físicas que nos é possível suportar. Ou devido a doença ou devido a acidente, já fui evacuado algumas vezes de ambulância para 100 kms de distância, já fui repatriado (é assim que se diz?) de outro país e já me encheram de morfina. Uma das vezes a dor foi tão forte que perdi momentaneamente os sentidos.


E contudo eu voltaria a passar de bom grado por cada um desses momentos se isso pudesse evitar a dor que sinto pela perda de alguém que amo.


A dor física infligida por uma lesão ou por uma infecção, pode ser fortíssima, pode-nos fazer gritar, espernear, esmurrar as paredes – eu sei, eu vivi isso! – mas tem um fim!


Por pior que tenha sido a dor, ela sempre passou. E de cada vez que isso me acontece, anima-me saber que mais tarde ou mais cedo, geralmente depois de uma nova cirurgia, ela irá passar.


Mas há uma dor que nunca passa!


Ao longo da vida perdi muitas pessoas que me eram queridas. Umas porque a vida as levou para longe, outras porque as perdi como amigas devido a algum gesto irreflectido e outras porque morreram antes de tempo.


As primeiras, tento-as recuperar fazendo uso às modernas tecnologias de comunicação, como o Facebook, e através dos reencontros pessoais ou em grupo. Estão a voltar a fazer parte da minha vida, como sempre deveria ter sido!


Esse reencontro é para mim muito importante, porque fazem parte do meu passado, da minha história. Escrevi um texto, ‘’Fragmentos’’ que podem encontrar no blog nos posts do mês de Maio, em que explico porque são para mim tão importantes os meus amigos. E penso sempre que se os amei e se apenas os acasos da vida os levou para longe de mim, então que estes acasos do avanço tecnológico da comunicação mos possam trazer de volta.


Muito pior é a dor dos amigos que perdi devido a um gesto, momento ou atitude irreflectida.


É uma dor que vai ficando, que nos mina, que nos desespera. É uma dor traiçoeira que nos ataca nos intervalos do dia e nas interrupções do sono. É uma dor de culpa e de arrependimento. É a demonstração da nossa falha, a nossa imperfeição enquanto seres humanos, o nosso pecado!


Afasta-nos do bem, afasta-nos de nós próprios!


E o pior, é que não há palavras que possam fazer sentir o nosso arrependimento, não há textos, por mais belos que sejam, que reflictam os nossos sentimentos, aquilo que sentíamos naquele momento e aquilo que sentimos depois, a todo o tempo.


E só nos nossos actos futuros, nos gestos e acções que praticamos, na mudança de rumo que damos às nossas vidas, no mostrar que queremos ser melhores do que éramos, que queremos ser melhores do que a maioria, podemos ter esperança de que um dia o rancor passe, o desafecto se atenue e nos possamos de novo reunir como os amigos que estávamos destinados a ser.


Contudo existe uma dor que nunca passará, a perda dos que já morreram. Eu sei que é uma dor que muda com o tempo. Criam-se memórias que nos confortam, que nos acarinham, que nos fazem felizes. Mas a dor, a dor da falta de presença física, do que ficou por dizer, estará sempre por cá!




O Diogo Sampaio de Guimarães era um dos meus melhores amigos. Faleceu devido a um trágico acidente. O indicador do nível de gasolina do seu automóvel estava avariado e ele viu-se sem combustível em plena madrugada na Av. 24 de Julho em Lisboa. Começou então a empurrar o seu carro até à bomba de gasolina que ficava a cerca de 100 metros.


Um imbecil bêbado, vindo de uma discoteca da zona e querendo mostrar às amigas que o acompanhavam que era melhor que o Fittipaldi, decidiu fazer-lhe uma razia para o assustar. Com o efeito do álcool e a falta de prática de condução acertou-lhe em cheio.


O Diogo foi evacuado para Santa Maria com lesões múltiplas onde haveria de morrer umas semanas depois devido a uma embolia, quando tudo parecia ir correr bem.


Eu era um dos seus melhores amigos e contudo não estive junto a ele quando mais precisava de companhia, de um apoio amigo. Agora vendo bem era ele que era um dos meus melhores amigos e não o contrário.


Eu morava então a 200 kms de distância, não havia auto-estradas, tal como agora tinha uma enorme dificuldade em colocar os deveres pessoais à frente dos profissionais e o acidente surgiu numa altura em que tive de trabalhar muitos fins-de-semana consecutivos e francamente, informavam-me de Lisboa que tudo estava a correr bem.


Tudo me serviu de desculpa na altura, tudo me serve para tentar justificar o porquê, mas o que é certo é que passados vinte anos ainda me culpabilizo por isso e caiem-me as lágrimas de arrependimento, como agora, no momento em que escrevo estas palavras.


Às vezes temos mesmo que escrever o que nos é mais íntimo, de mostrar quem somos, com as nossas coisas boas e os nossos defeitos. Quando me perguntam se me sinto confortável com a exposição pública das minhas memórias eu digo-lhes que o faço para fixar no tempo lugares, eventos e pessoas que se destacaram e que ficarão perdidos na memória colectiva se eu não o relembrar por escrito, para que fique!


Digo-lhes que o faço para ter tempo de dizer aos meus amigos o quanto eles significam e significaram para mim. Faço-o para homenagear amigos que se destacaram e para fazer uma elegia à amizade. Faço-o para que os meus filhos saibam como foi e como fui.


E tudo o que faço, na escrita e nas acções comunitárias faço-o também como acto de contrição. É tempo de crescer! É tempo de ser melhor do que era!


A minha crónica de hoje chama-se ‘’O Segundo Andar do Diogo’’ é dedicada à sua memória e àqueles dias felizes. A única nostalgia que sinto do passado não são os momentos que vivi, os lugares que frequentei, as aventuras em que participei. A única nostalgia que tenho do passado é os amigos que perdi. Uns recuperarei com o tempo, outros recuperarei com os actos mas há alguns que só poderei recuperar através da sua recordação.




O SEGUNDO ANDAR DO DIOGO

Falar do segundo andar de casa dos pais do Diogo Sampaio de Guimarães, na Praça da Fruta, ao tempo por cima da loja Monteiro, é falar antes de mais no próprio Diogo.

O Diogo foi um dos meus melhores amigos, presente em todas as peripécias e aventuras ocorridas nas Caldas e mesmo em muitas em que participei ou assisti em Lisboa, depois de partir para a universidade.

Ele esteve omnipresente nas matinés do Casino que mencionei numa das minhas primeiras crónicas (As Matinés no Casino) e em todos os outros episódios ai ocorridos. Era meu companheiro inseparável nas fitas do Pinheiro Chagas e do Salão Ibéria (O Piolho e as Reprises) e frequentador permanente do Sotão do Kiko (O Primeiro Sotão do Kiko) e mais tarde do Sotão dos Crespos (O Sotão), assistiu às cenas em volta do ‘’Disco Amarelo’’ e do ‘’Punk Belga’’ e foi protagonista de ‘’Sardinhadas com Azeite’’. Era o meu par e adversário preferido no ténis e não faltava às festas a que referi em ‘’Slows e outros Termos Náuticos’’. Picou o ponto em todas as referências a que fiz no meu Manifesto do Grupo sobre o que fazíamos na nossa juventude.

Estava certamente connosco nos eventos mencionados em ‘’Um Carnaval Perfumado’’ e ‘’Caçada na Mata Real’’.

Esteve sempre no meu pensamento em ‘’Cruzando os Anos em Poucos Dias’’ e só o facto de estudar em Lisboa o impediu de participar na nossa excursão de finalistas. E ainda tentou!

Como praticou rugby em Lisboa, jogava connosco ao fim de semana após os acontecimentos descritos em ‘’Rugby nas Amoreiras’’.

Era um dos participantes nas carrinhas de rolamentos de ‘’O Fim da Infância’’ e um dos membros de ‘’A Resistência’’.

Seguia muitas vezes connosco nas expedições diurnas ao Jardim-Cinema e nocturnas às discotecas dos arredores de Lisboa, como descrito em ‘’Um Vinho do Porto Com Mais de 30 Anos’’ e foi em sua casa que se alojou o grupo de amigos de Cascais que participaram comigo no retiro mencionado em ‘’Em Busca da Espiritualidade’’, quando uns tempos mais tarde decidiram nos vir visitar às Caldas.

Referi-me a si na crónica ‘’A Amizade está ao virar de uma Árvore’’ mencionando as nossas corridas de bicicleta no parque.

Era com ele também que corria para a ‘’Velha Esplanada’’ para comprar gelados.

Se colocasse no blog uma etiqueta com o seu nome seria certamente um dos títulos mais mencionado. Um amigo sempre presente em todas as ocasiões, por vezes nem percebíamos como ele lá tinha ido parar! O Diogo fazia-se convidado para a minha vida e hoje lamento amargamente que não tenha vindo para ficar!

Já passaram 20 anos desde que o Diogo morreu. De uma forma estúpida, trágica, malvada, ridícula, sem sentido, ilógica, absurda!

E eu estupidamente nem uma só foto tenho para o recordar perante vós. Como é possível que a nossa comunhão de vida de tantos anos não tenha sido registada por uma única vez?!

O Diogo contudo estará sempre na minha memória e não há dia que passe que não me veja obrigado a recordá-lo. Um local que visito, uma pessoa que reencontro, um facto que me é mencionado, uma das suas inúmeras broncas, manias, cenas estapafúrdias, palhaçadas, partidas, agora doces lembranças que me são recordadas!

O Diogo vivia em Lisboa, no Campo Grande, mesmo junto ao Colégio Moderno, mas tendo a sua família casa nas Caldas, não perdia um segundo para vir para cá. Apanhava uma boleia – às vezes punha-se em plena auto-estrada na Portela à boleia! – ou apanhava a camioneta da Rodoviária e antes do jantar de sexta-feira já por cá cirandava. Adorava as Caldas e só ia a Lisboa para frequentar as aulas. Todo o tempo que se libertava era passado nas Caldas.

Apesar de na maioria das vezes os seus pais não o poderem acompanhar, isso não atrapalhava o Diogo pois haveria sempre uma casa amiga para lhe dar as refeições que necessitava, em contrapartida a sua enorme casa estava sempre à disposição dos amigos.

O Diogo tinha características muito especiais, era uma criança grande, um miúdo que não queria crescer mantendo as virtudes - a que na altura chamaríamos por certo defeitos - da infância, a ingenuidade perante terceiros, a confiança total no próximo, a falta de cerimónia com os amigos.

Estas características valeram-lhe muitas partidas inofensivas que lhe pregávamos mas também muitas reprimendas pelos seus exageros e nem compreendia a razão do sermão. Tinha um enorme apetite e podia almoçar ou jantar tantas vezes quantas as refeições que lhe eram oferecidas. Detinha também o recorde de enfardamento de papo-secos das Teixeira. A imagem do Diogo a chegar à praia com a toalha numa mão e um saco de plástico com uma dúzia de papo-secos com manteiga e fiambre, é-me recorrente!

Não vou aqui dizer quantas sardinhas comeu uma vez no Casal dos Crespos, tendo sido mandado parar para que chegassem para todos. Foram dezenas e dezenas mas vocês nem acreditariam no número. Uma vez em casa da nossa tia por afinidade, Carlota Mendonça, uma linda moradia na Avenida, tentou comer todas as trouxas-de-ovos que tinham ficado do jantar por considerar que iriam ficar para se estragar uma vez que a Tia Carlota vivia sozinha, eram algumas dúzias!


Era também muito competitivo e esse era o seu principal handicap nos desportos. O Diogo tinha uma aptidão nata para qualquer desporto, poucos dias após começar a praticá-lo já o fazia de forma desembaraçada e bastante perfeita. Batia-me regularmente no Ténis, no Ping-Pong, no Snooker e no Bilhar, nos Matraquilhos e até nos Flippers. O truque, que usei em abundância, era picá-lo, começar a importuná-lo com bocas que o desvalorizavam. O Diogo nessa altura irritava-se, entrava em stress e acabava por perder sistematicamente os jogos perante um adversário de nível inferior como eu era.

Começámos a jogar ténis juntos aos seis anos, primeiro com o Toni Vieira Pereira como professor e depois pelos seus assistentes que estivessem disponíveis, o Néné Cardoso, o Gé-Gé Sottomayor, seu primo, o Rogério Matias e o Miguel Bento Monteiro. Mais tarde foram os seus dois irmãos, o Ai-Tó e o Miguel que nos aperfeiçoaram e corrigiram.

Também ficaram célebres as nossas corridas de bicicletas, primeiro no pátio do casino, depois no recinto das bicicletas no parque e por fim por toda a cidade e arredores. Inicialmente o Diogo tinha uma pequena bicicleta vermelha que por ter rodas pequenas exigia um enorme esforço contra a minha Vilar e a Motobecane do Kiko mas um belo dia, o seu pai Aires, apareceu com uma grande surpresa, três bicicletas clássicas, as típicas pasteleiras pretas, para cada um dos filhos rapazes e cada uma ostentava uma pequena chapa junto ao guiador com o nome de cada um deles. Foi uma festa! O Miguel chegou a ir de Caldas a Lisboa, à sua casa do Campo Grande, na sua bicicleta! Demorou seis horas, partiu às seis e chegou ao meio-dia, sempre por estradas nacionais! Ainda há pouco tempo nos encontrámos por acaso no Colombo e relembrámos esses tempos e esse episódio!



Como me faz falta um amigo como o Diogo! Nós éramos inseparáveis companheiros de desportos, salvo o caso em que uma vez me pediu emprestada uma prancha de windsurf, que por sua vez me tinha sido também emprestada e que eu repousara no areal junto à lagoa para descansar ou conversar com amigos, conseguindo me convencer que sabia velejar. Na realidade conseguiu levar com brio a prancha em linha recta quase até à outra margem, nos belgas. O pior foi que não sabia manobrar, caiu e depois de várias tentativas para se reerguer na prancha, decidiu voltar a nado e deixar a prancha à deriva! Lá tive eu que ir atravessar a lagoa a nado para recuperar a prancha!



Éramos tão inseparáveis em determinadas situações que após a sua morte esmoreceu por completo o meu gosto pelo ténis, desporto que deixei gradualmente de praticar até um acidente me impedir fisicamente de o voltar mesmo a fazer.

Jogávamos bilhar e snooker desde os nossos doze anos. Aprendemos com o meu avô materno no Marinto e prosseguimos por nossa conta nas mesas da cave do Central, no Camaroeiro, na Maratona, no Jardim-Cinema, no Foxtrot, no Pavilhão Chinês e em outros locais em Lisboa, no Caravela e no Leão na Foz do Arelho e mais tarde no Dreamers, no Solar da Paz e no Sitio da Várzea, onde jogámos as últimas partidas.

Jogávamos praticamente sempre que nos encontrávamos e após a sua morte nunca mais voltei a jogar uma partida que fosse até ao ano passado, em que de férias numa herdade no Alentejo o meu filho mais novo, Francisco, me pediu para lhe ensinar. Tal como acontecera à trinta e tal anos atrás com o meu avô João!


E entre um misto de alegria e uma enorme nostalgia pela falta que essas duas pessoas, o meu avô e o Diogo, me fazem na vida, ensinei-lhe a segurar o taco, os efeitos, a fazer pontaria.

Por respeito à memória do Diogo, por querer preservar esses momentos únicos que se destacaram por entre as várias recordações da nossa amizade, não voltara a jogar e então, naquele instante, senti que era uma causa tão bonita, a partilha de um momento único e inesquecível entre mim e o meu filho, que se justificava a quebra do meu pacto, o Diogo haveria de compreender e de gostar!

Mas o Diogo também tinha várias coisas em comum comigo e umas delas é que sistematicamente nos interessávamos pela mesma rapariga. O facto não era apenas coincidência, na realidade normalmente só nos chamavam a atenção caras novas, geralmente amigas de amigas que com elas vinham passar férias às Caldas. E sempre que eu ficava um pouco mais de tempo a conversar com uma delas lá vinha o Diogo me dizer que eu estava a tentar roubar-lhe a namorada! Mal podia eu dizer que ‘’Namorada? Só é se ela souber!’’ Aliás uma das minhas bocas preferidas quando o Diogo me dizia que a rapariga era sua namorada era perguntar-lhe: ‘’E ela já sabe?’’

Olhando agora para trás, salvo uma única excepção, a bela brasileira Solange, prima da Bibú e da Vani Castro, nunca namorei com alguma dessas turistas mas adorava a ideia de implicar com o Diogo e foi assim com a Luisinha Castelo Branco, prima do Manel e do Luis Castelo Branco, com a irmã da Manuela Benites que nos visitou numa célebre semana em que uma baleia deu à praia na Foz, com a Micá, amiga da Isabel Moreira, neta do Dr. Ernesto Moreira e entre outras que não guardei na memória, com outra amiga da Isabel Moreira, a Xana, actualmente mais conhecida pelo seu trabalho como actriz e pelo seu nome Alexandra Lencastre!

A Xana, veio por uma ou duas vezes passar às Caldas um período das férias de Verão com a sua amiga Isabel Moreira. Era muito simpática e entrosou-se rapidamente no nosso grupo de amigos. Passava os dias connosco na praia da Foz, onde aliás todos tínhamos barracas alugadas e as noites eram repartidas entre a casa da Isabel, sobre o túnel por trás da Igreja, na Zaira ou na Taiti e no segundo andar do Diogo!


Como o Diogo passava longas temporadas sozinho nas Caldas, os seus pais, por certo, preferiam que ele permanecesse em casa ainda que na companhia de uma multidão de amigos, do que a vaguear pela rua ou a passear em carros conduzidos por jovens com pouca experiência de condução. Assim disponibilizavam-nos o segundo andar de sua casa. Este estava inteiramente mobilado pois servia de área de hóspedes ou para quando tinham toda a família nas Caldas mas tinha uma entrada independente do resto da casa, tanto do primeiro andar, a residência oficial da família, como das águas furtadas onde residia a Aurora, sua empregada de sempre e o seu marido Miguel.

Ficava e fica situado num dos edifícios mais antigos das Caldas. Se procurarmos no Google imagens da Praça da Fruta, que já foi Praça Maria Pia e desde 1910 se chama Praça da República, verificamos a sua existência desde a criação do terreiro que deu lugar à praça.

Acedia-se por umas escadas em mármore muito íngremes que estavam à esquerda da entrada, e das montras, da loja Monteiro. Subia-se ao primeiro andar, à direita ficava a porta principal para o primeiro andar e à esquerda ficava a loja de retrosaria e o atelier da costureira D. Deolinda, à frente ficava a porta que dava para um hall interior que por sua vez dava acesso às portas do fundo da casa principal, que no passado serviria para atendimento dos fornecedores da cozinha, e às escadas interiores em madeira que conduziam aos andares superiores.


Durante uns tempos, apenas tínhamos acesso às divisões que davam para a Praça pois o andar era tão grande que se dividira em dois e a parte de trás, onde se situava a cozinha, estava arrendada a uns amigos. Quando estes partiram das Caldas, pudemos então utilizar todas as divisões da casa, embora na prática geralmente só nos mantivéssemos na grande sala com três janelas viradas para a rua.

Era aqui o centro da actividade, era como se fosse o nosso clube privado, daqueles que existem nos países anglófonos e que são em alguns casos exclusivamente para homens…ou para mulheres. Não era este o caso, pois toda a gente podia entrar se bem que na maioria das vezes as raparigas do grupo preferissem ir para outros lados do que se entediar em longas tardes de jogatanas de cartas.


Na realidade a maioria do tempo que passávamos no segundo andar do Diogo, e foram muitas as tardes e serões em que aí estivemos, era passado a jogar todo o tipo de jogos, desde o Monopólio, ao Petróleo, ao Risco e ao Cluedo, passando claro pelo xadrez e pelas damas. Também jogávamos às cartas, o King, o Crapô, à Sueca e os que sabiam jogavam à Canasta, Bridge não, pois só o João Moreira o sabia jogar! Mas o que nos retinha por mais tempo eram sem dúvida as sessões de pokeradas jogadas a feijões.



Parece que o poker é proibido de jogar fora dos casinos com o respectivo alvará, não sei se o jogo em si se jogar a dinheiro, contudo éramos todos menores de idade e passaram já trinta anos pelo que o crime, a haver crime, já deverá ter prescrito e verdade seja dita, não jogávamos senão a feijões, os de manteiga a fazerem de fichas de 1 e os feijões-frade a fazerem de fichas de 5!


Pelo sim pelo não, o melhor é não mencionar pelos nomes as dezenas de participantes que ao longo de alguns anos participaram nessas rodadas mas posso vos dizer que nos divertíamos muito mais pelas bocas dos participantes e assistentes e pelas cenas de bluff do que pelo jogo em si.

Este aliás era jogado com cartas de 7 ao Ás, eram pois retiradas as cartas do 2 ao 6 e conhecia duas variantes, aberto, ou seja eram distribuídas duas cartas aos jogadores estes tinham de as combinar nas conjugações conhecidas do poker com três das cinco cartas que eram gradualmente expostas sobre a mesa. Podiam ir apostando cada vez que se expunha uma carta na mesa e podia-se trocar uma ou outra carta até ser exposta a terceira carta sobre o tabuleiro. Na variante fechada eram distribuídas cinco cartas por cada um dos participantes que podia trocar até três cartas até à terceira rodada e depois efectuar as conjugações entre as cartas que detinha.

Mas nem só com jogos, leituras e assistência aos filmes de televisão, a preto e branco, se passavam os dias e os serões, geralmente até à meia-noite, hora de recolher.

Uma vez por outra aparecia alguma inovação e um dia o Fernando Horta e o Gentil apareceram com uma velha máquina de 8mm ou super 8 e com umas fitas para exibirem.

- Gamámos estas películas que estavam no sótão! São pornográficas! – exclamaram com ar de terem cometido uma enorme infracção e de estarem contentes por isso.

Olhámo-nos todos com ar de cúmplices. Ainda bem que não estavam raparigas presentes. Para muitos de nós, eu incluído, era a primeira vez que iríamos ver um filme pornográfico. Lembrem-se que na altura não existiam vídeos, nem canais por cabo. Apenas o Bar 25 na Rua do Coliseu e uma sala perto do Parque Mayer e ainda não os tínhamos descobertos! Na realidade tínhamos visto por engano do projectista umas apresentações no Salão Ibéria quando nos preparávamos para ver um filme de cowboys ou do Tarzan mas tinham sido apenas uns poucos minutos do Western Porno (ler a crónica ‘’O Piolho e as Reprises’’), do Mandigo e julgo que do Último Tango em Paris mas nada que nos elucidasse bem da questão!


Os rapazes da Amoreira lá puseram a bobine a rolar projectando o filme contra a parede nua.

Bem, nua era apenas a parede! As fitas em acetato estavam completamente degradadas pela humidade e fungos de anos de armazenamento e não se conseguia ver absolutamente nada. Apenas me recordo de uma cena com velas de aniversário e estrelinhas na parte final do filme. Podia ser apenas uma película caseira de uma festa de aniversário da família, vai-se lá saber!

Muito nos divertíamos no segundo andar do Diogo!

E quanto à Alexandra Lencastre perguntam vocês? Bom, a Xana era na realidade muito bonita e pretendida por todos os rapazes. De resto todos tentámos, sem sucesso, a nossa sorte. Viria a ter um serão de conversa a dois com ela enquanto os outros todos estavam entretidos com qualquer coisa e é só disso que me lembro. Disso e de que era muito simpática mas tinha de ter uma paciência de santa para nos aturar a todos! Ainda estive com ela por várias vezes no Restelo, na Rua Tristão Vaz, em casa da Isabel mas depois só a voltei a ver por uma vez, em meados de 80 numa paragem de autocarro no Saldanha.



As idas ao segundo andar do Diogo diminuíram com o aparecimento do Sotão dos Crespos e acabaram quando terminámos o liceu. Agora já não tínhamos tantas tardes livres nem os fins-de-semana nas Caldas podiam ser gastos enfiados em casa. Havia novas paragens por descobrir!

O Diogo continuou a ser meu companheiro quase diário dos serões de Lisboa e mantivemo-nos sempre por perto, durante toda a década de 80 até à minha ida para Coimbra em 1987. E foi aí que recebi, uns anos mais tarde, um dos mais tristes telefonemas da minha vida.



O Diogo permaneceu sempre dentro de cada um de nós, seus amigos. E talvez por isso, a sua mãe, a querida Tia Bia, sempre que me encontra, faz uma enorme festa, enchendo-me de beijos e abraços. Ela sabe que é um pouco do seu filho Diogo (e também por certo do Ai-Tó!) que ela reencontra em mim e eu, da mesma forma quando a encontro, abraço-a como estando a abraçar os seus filhos, meus amigos para a vida!


Ao Diogo

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